sábado, 14 de setembro de 2024
Publicado em 09 jun 2015 - 03:58:58
Neusa Fleury
“A voz do povo” é o nome de um jornal que circulou em Ourinhos por trinta anos, cuja coleção foi cuidadosamente guardada durante décadas, junto com milhares de fotos e outros documentos históricos da cidade. O guardião desse tesouro foi o professor Norival Vieira da Silva, que morreu no domingo. Estudioso da nossa história, o professor se entusiasmava quando mostrava o seu acervo ou ajudava na identificação de fotos antigas, contribuindo para montar um quebra-cabeças que foi aos poucos esclarecendo pontos obscuros da trajetória dos ourinhenses.
Quando inauguramos o Museu Municipal, em 1993, sua colaboração e apoio foram decisivos. O acervo inicial foi formado por peças do antigo Museu “Antonio Carlos de Abreu Sodré”, que havia sido desativado há anos. As peças foram encontradas em um barracão no Pátio da Prefeitura. Fomos até o espaço, Norival, Benedito Pimentel e eu, e resgatamos aqueles objetos como quem descobre um tesouro no fundo do mar. Recuperamos documentos, fotos e outros tantos objetos que eles ajudaram a identificar e tornaram possível iniciar o projeto do novo Museu. Também foram doadas pelo professor Norival, peças de cerâmica indígena, algumas delas fragmentos encontrados às margens do rio Paranapanema, por ocasião da construção da usina em Salto Grande.
Anos depois, em 1996, quando o Museu foi transferido para o prédio ao lado da estação ferroviária, o professor Norival doou a sua coleção de “A voz do povo” para a instituição. Em 2014 a Associação de amigos da Biblioteca Pública conseguiu recursos para digitalizar todos os exemplares, que podem ser lidos, além de outras coleções, no site www.tertuliana.com.br
Conto essas histórias pensando que as coisas precisam de tempo para acontecer. Neste caso, muito mais que o tempo, mas o cuidado, a perseverança e a vontade de preservar a memória da cidade. O professor Norival de alguma maneira foi também a voz do seu povo. Escreveu durante anos no Jornal da Divisa e em outros jornais da cidade, fundou e escreveu em jornais e experimentou o rádio com igual entusiasmo. Adorava o retorno rápido que recebia dos ouvintes da Rádio Clube.
Professor durante décadas, sempre falava com prazer sobre a profissão. Fotos de antigos carnavais mostram sua alegria participando de blocos com os alunos.
Foi um incentivador do movimento teatral na cidade, mas não perdia concertos, exposições ou apresentações de dança no Teatro Municipal. Na década de 1990, quando realizávamos as Noites da Seresta, o professor Norival pôde ser visto no palco, como locutor ou representando pequenos papéis. Era um evento em que se sentia à vontade, poeta e romântico como foi.
Foi um prazer promover o lançamento do seu livro de crônicas no Bar do Joel. Como se divertiu naquele dia, muito à vontade naquele ambiente informal, entre velhos amigos. Talvez um dos segredos de ter mantido o prazer de viver até o final tenha sido que não manteve apenas velhos amigos, mas conquistou muitos amigos jovens, que admiravam sua cultura e com quem sempre teve assuntos pra conversar.
Confesso que passei uma saia-justa com o professor Norival. Como ele teve uma participação muito importante para que o Museu Municipal fosse inaugurado, achei que deveríamos homenageá-lo como patrono. Iniciante nos assuntos da administração pública, não sabia que só podem batizar prédios públicos pessoas que morreram há pelo menos um ano. Ele ficou sabendo dessa minha intenção, e apareceu no Teatro um dia de manhã como era seu costume, para um café. “Então você quer me ver morto, é?”, perguntou zombando de mim, rindo e apertando os olhos azuis. Quase morri de vergonha.
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