domingo, 03 de dezembro de 2023
Neusa Fleury de Moraes
Vivemos numa democracia, podemos escolher nossos governantes, hoje temos mais liberdade e algumas coisas estão mais fáceis. Mas pode não ser bem assim
Nas décadas de 1960 e 1970 também vivíamos uma insatisfação popular como hoje. Só que esse descontentamento resultou em uma efervescência cultural e discussões políticas muito diferentes. Naquele período, além das marchas populares, os protestos também aconteciam através da música, literatura ou teatro, e produziram trabalhos memoráveis que acabaram clássicos da cultura brasileira.
A repressão estimulava o desejo de criação em todas as áreas; quanto mais proibiam, mais a produção crescia e melhorava. No humor foi uma festa com os traços característicos do Henfil, Millor, Ziraldo, Jaguar e outros tantos. Hoje temos bons cartunistas, mas não sei se nossa capacidade de indignação diminuiu, se nos acostumamos com tanta barbaridade ou se perdemos o hábito saudável de rir de nossos próprios defeitos, mas me parece que o impacto não é o mesmo.
Quase 50 anos nos separam daquela geração privilegiada. Se por um lado o país progrediu nesse período, diminuindo os índices de pobreza e analfabetismo, por outro nossa capacidade de educar para que as pessoas participem da vida em sociedade está muito longe de ser um sucesso.
Faz muitos anos que os pais são obrigados a matricular os filhos na escola, mas isso não tem significado uma melhoria na educação do país. Infelizmente as atividades realizadas durante o período escolar não estimulam processos criativos ou de reflexão, e nem sempre são do interesse dos alunos; os professores recebem salário de fome, não possuem preparação adequada nem vivenciam uma carreira satisfatória.
O resultado é que formamos mal várias gerações, especialmente no estado de São Paulo. Quando o assunto é educação, há anos estamos perdendo espaço para estados do nordeste, cujas escolas conseguem preparar melhor seus alunos. É só analisar os índices que medem a qualidade do ensino nos estados brasileiros.
Enquanto isso foi acontecendo, um processo de degradação política e de valores tomou conta da sociedade brasileira. Os picaretas foram ocupando os espaços na política, que deixou de ser lugar de quem quer trabalhar pela coletividade, mas uma oportunidade de obter benefícios pessoais. Espertinhos e enganadores abriram uma igreja em cada esquina, e para lá correram tantos de nós, deixando parte dos salários, em busca de esperanças e um sentido para a vida.
O resultado é que estamos vivendo um retrocesso cultural e político com consequências para todos os segmentos sociais. E o que quer hoje a maioria, mal formada pelas nossas escolas e com o poder de questionamento embotado pelas crenças religiosas? Prega a volta dos militares, a redução da maioridade penal e até o retorno da disciplina de educação moral e cívica nos currículos escolares, desconhecendo a iniciativa de manipulação do pensamento que originou sua implantação décadas atrás.
Alguns querem a volta da cartilha na alfabetização das crianças, como se o mundo não tivesse mudado tanto. Nada contra, também aprendi a ler na “Caminho Suave”, mas hoje existem outros recursos para incentivar as crianças que desde bebês já vivem com um tablet na mão. Outro dia ouvi uma adolescente contando que havia participado de uma palestra no colégio onde estuda. O assunto era a educação sexual, e a orientação que receberam é que a única forma de prevenir a gravidez seria a abstinência sexual. Não é por nada não, mas depois reclamam do aumento de casos de gravidez na adolescência, não é?
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