domingo, 17 de agosto de 2025
Publicado em 25 nov 2024 - 10:28:44
Especialistas alertam sobre impacto social e psicológico da prática descontrolada de bets; casos aumentam com regulamentação
Alexandre Mansinho
O Brasil vive uma epidemia silenciosa: o vício em apostas online – a ludopatia. Impulsionadas pela regulamentação em 2018, as bets se tornaram uma prática crescente, mas seus impactos vão além do entretenimento, transformando-se em uma questão de saúde pública. Especialistas alertam para os perigos do descontrole, enquanto histórias como a do ourinhense Antônio dos Santos* (nome fictício), 28, mostram o lado sombrio do universo das apostas esportivas.
Santos conta que perdeu todo o salário em um único dia. O jovem começou a apostar há dois anos, incentivado por amigos. Nos primeiros meses, os lucros foram altos, chegando a R$ 50 mil. “Cogitei deixar meu emprego e viver só disso”, relembra. No entanto, a busca por ganhos maiores rapidamente fugiu do controle, e ele se viu comprometendo todo o orçamento mensal.
A realidade de Santos reflete um cenário alarmante. Pesquisa da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC) aponta que 63% dos apostadores no Brasil comprometem parte da renda com as bets. Além disso, 19% deixam de fazer compras no mercado, e 11% priorizam as apostas em vez de gastos com saúde e medicamentos.
Ainda mais preocupante é o impacto em famílias de baixa renda. Relatório do Banco Central revelou que, apenas em agosto deste ano, beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões em apostas esportivas, cerca de 21% dos recursos distribuídos pelo programa. Desde janeiro, 24 milhões de brasileiros realizaram pelo menos uma transferência para sites de apostas.
O vício em jogos de azar, ou ludopatia, é reconhecido como doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 2018. Bruna Lopes, psicóloga do Programa Ambulatorial Integrado dos Transtornos do Impulso (Proamiti) da USP, afirma que a procura por tratamento triplicou nos últimos cinco anos. “O perfil típico envolve jovens vulneráveis, sem parceiros e com condições econômicas frágeis. Também há uma forte associação com depressão e ansiedade”, explica.
Marcelo Santos Cruz, psiquiatra da UFRJ, corrobora. Ele destaca que os impactos vão além do apostador, afetando diretamente suas famílias. “O crescimento descontrolado das apostas e a falta de políticas públicas claras são extremamente preocupantes do ponto de vista da saúde mental”, alerta.
O processo de adicção costuma ser gradual, dificultando o reconhecimento precoce. Entre os sinais de alerta estão a obsessão pelo jogo, a necessidade de apostar quantias maiores para sentir emoção e o uso de apostas como fuga de problemas emocionais. Comportamentos como mentir para encobrir o vício e arriscar relações pessoais e profissionais também são comuns.
Santos relata que só percebeu o problema quando perdeu todo o salário. “Eu fazia mil reais em um dia, mas, em vez de sacar, tentava mais e acabava saindo sem nada”, diz. A dependência não está ligada ao dinheiro em si, mas à sensação de prazer gerada pela liberação de dopamina no cérebro.
Superar a ludopatia exige um tratamento multidisciplinar que combine terapia cognitivo-comportamental, acompanhamento médico e apoio familiar. “O primeiro passo é reconhecer o problema e buscar ajuda”, afirma Bruna Lopes. Aplicativos que bloqueiam sites de apostas, grupos de apoio como Jogadores Anônimos e serviços públicos como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são alternativas viáveis.
Santos compartilha que só conseguiu apoio ao abrir o coração para sua família. Atualmente, ele segue em tratamento com psicólogo e psiquiatra, além de usar medicação controlada. “Não tenho acesso ao meu dinheiro, que é gerido pelo meu pai. Foi difícil, mas necessário”, relata.
Desde a regulamentação, o Brasil tornou-se o terceiro maior mercado mundial para casas de apostas. Especialistas defendem maior controle governamental e a criação de políticas públicas para mitigar os efeitos sociais. Propostas em discussão incluem restrições de acesso para jogadores compulsivos e medidas educativas.
Enquanto isso, o número de casos cresce. A facilidade de acesso por celulares e a propaganda massiva tornam o vício uma ameaça real. “Estamos lidando com algo tão destrutivo quanto a dependência química”, alerta Cruz.
A ludopatia não afeta apenas o indivíduo, mas toda a sociedade. Enfrentar essa epidemia exige conscientização, regulamentação e investimentos em saúde mental. Para os especialistas, é fundamental que apostadores e familiares saibam que existem recursos disponíveis e que buscar ajuda é um ato de coragem. “Apostar pode parecer inofensivo no início, mas é preciso estar atento aos sinais antes que a diversão se transforme em um pesadelo”, conclui Lopes.
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