sexta, 26 de julho de 2024

Projeto “Comida de Verdade” fomenta a agricultura familiar e visa combater a insegurança alimentar e a fome

Publicado em 01 out 2022 - 16:16:59

           

José Luiz Martins

Com iniciativas solidárias e o objetivo de reaproximar a comunidade ourinhense da agricultura familiar local que produz alimentos vivos, nutritivos e em sua maioria livres de agrotóxicos, o projeto ‘Comida de Verdade’ nasce inspirado nos princípios da agroecologia, tendo como base o fomento à agricultura familiar e o combate à insegurança alimentar e à fome que se consolidou no país.

Conectando pequenas hortas urbanas em bairros periféricos com a agricultura familiar no campo agrário ourinhense, algumas pessoas, incluindo estudantes e pesquisadores de universidades e profissionais de diversas áreas, vem se articulando na formação de redes de apoio mútuo e resgatando saberes ancestrais para promover o manejo ecológico do solo e consequentemente a produção de alimentos livres do atual modelo hegemônico de cultivo.

A iniciativa para o surgimento do “Comida de Verdade” partiu da psicóloga e educadora ambiental ourinhense July Yukie Abe de Lima, que contou à reportagem do NEGOCIÃO como se iniciou o engajamento de um grupo de amigos, buscando aumentar o acesso a alimentos saudáveis de famílias em situação de vulnerabilidade.

“Atualmente contamos com cerca de 15 a 20 pessoas efetivamente comprometidas com o projeto, entre pessoas que contribuem com mão-de-obra para as entregas, ou com doação financeira mensal, entre outras formas de articulações para somar à nossa iniciativa”, revelou a psicóloga em entrevista ao Jornal.

July explicou como a associação organiza as ações para aquisição e distribuição de hortifruti granjeiros, entre outros cultiváveis advindos da agricultura familiar, criando um elo entre produtores que precisam vender e consumidores que necessitam e dificilmente têm acesso a esses produtos. Contou ainda que atualmente estão arrecadando doações para levarem dois produtores para um curso de formação em Agrofloresta, colaborando para a transição agroecológica destes. Confira a entrevista:

 

Josy, july, Nalva, Marcelo com o bebê João Akira e Paloma.

Como surgiu a associação “Combida de Verdade” e o que os motivou?

– O nosso coletivo surgiu assim que iniciou a pandemia, em março de 2020, quando eu vi uma iniciativa em que nos inspiramos (pertim.org), e lancei num grupo de amigos a ideia de fazermos aqui. A Josy (Josy Carla dos Santos, estudante de geografia da Unesp) e Pablo (Pablo Lauwrence – Estudante e Pesquisador no curso de Geografia (Licenciatura/Bacharelado) na FCTE-Faculdade de Ciências, Tecnologia e Educação – Câmpus de Ourinhos – Unesp), toparam e montamos um grupo, começamos a fazer folhetos solicitando doações, indicações de produtores e indicações de famílias vulneráveis. Em poucos dias já tivemos nossa primeira entrega, logo no início de abril de 2020, e não paramos mais. A maior motivação do projeto era garantir que os pequenos produtores locais não perdessem suas colheitas, e tivessem a garantia de vender por preço justo. E a partir disto, também podem levar alimento de qualidade, e informação e estímulo à autonomia e soberania alimentar da população.

Como se desenvolvem as ações do grupo?

As ações são possíveis com as doações que recebemos. Hoje temos um grupo de WhatsApp que destina 95% dos recursos que recebemos para as pessoas que compõem esse grupo ou seus amigos e parentes. Quando temos recurso, aí marcamos uma entrega conforme disponibilidade do grupo, sempre com uma pessoa disponível com carro e outro ajudante. Temos conseguido fazer entregas semanais ou quinzenais, atualmente com 4 listas diferentes por bairros, com uma média de 17 a 20 famílias por entrega. O número de famílias vem crescendo exponencialmente com esse desgoverno, e as famílias que já atendemos desde o início têm vivido cada vez com maiores dificuldades com essa inflação absurda em nosso custo de vida. O valor que gastamos por entrega mostra também esse aumento, por exemplo uma caixa de ovos que em 2020 pagávamos de 126 a 130 reais agora está $170.

Um fato que vale ressaltar também é que atualmente os agricultores veem na gente uma parceria para não perderem suas colheitas, e nos avisam quando precisam vender alguma produção rapidamente. E fazemos o máximo possível para arrecadar fundos e garantir a compra de ao menos parte desses alimentos.

Infelizmente no início do projeto não tínhamos contato tão próximo, e não conseguíamos garantir a compra, testemunhamos muitos produtores desistindo da prática que sustentou suas famílias por anos.

A entrega costuma durar cerca de 5 a 6horas, entre buscar as encomendas feitas no dia anterior em cada produtor e levar de casa em casa, dialogando sobre a vida, trocando informações principalmente sobre soberania alimentar.

Quais as conexões com a agricultura familiar e a agroecologia?

– Historicamente o campo agrário brasileiro foi tomado por processos coloniais que implicou na implantação do modo de produção capitalista na agricultura. A permanência das relações feudais nestes sistemas agrícolas gera impactos negativos sobre os ecossistemas e os indivíduos que compõem a biosfera.

Desta forma, a Agroecologia é reconhecida como ciência e prática, sendo amplamente difundida como guardiã da agro biodiversidade, que resgata as tecnologias ancestrais dos povos que integram a diversidade sociocultural brasileira, em que agrega valor aos bens produzidos nos agroecossitemas, incentivando uma produção sadia em todos os sentidos, o que favorece inclusive a gestão participativa e geração de renda sob a égide da economia solidária.

A agricultura familiar é o pilar do nosso objetivo. Claro que gostaríamos muito de levar alimento orgânico sempre, mas entre um orgânico de grandes empresas, e um alimento produzido por pequenas famílias, ainda que com uso de agrotóxicos, sempre optamos pelo segundo.

E na construção e fortalecimento dos vínculos com esses pequenos produtores, alguns foram se abrindo mais às trocas de aprendizagens. A Dona Nalva (Maria Nalva da Silva, agricultora agroecológica de Ourinhos) foi a agricultora que nos abraçou, e então nos abraçamos. A Josy e Pablo então começaram a ajudá-la a roçar e plantar, e aos poucos levar informação sobre agroecologia. Acho que o mais lindo da relação deles foi o respeito aos conhecimentos tradicionais da Dona Nalva, em tecer com ela as práticas sempre valorizando seus conhecimentos e visão de mundo resgatando saberes ancestrais.

Depois temos também a Paola Tojeiro Chiaratto (Agente técnica de extensão rural Agroecológica pela Ufscar e Gestora de projeto agroecológico), que também desenvolveu ações para aproximar a referida agricultora de um dos princípios da agroecologia: a agrofloresta, levando informação e mais técnica que somou com o que já vinham desenvolvendo.

Com os demais agricultores também sempre buscamos diálogo. Com as famílias que recebem os alimentos, buscamos levar informações sobre as PANC – Plantas Alimentícias não convencionais, sempre visando a autonomia e soberania alimentar.

Existe algum apoio, incentivo governamental (municipal, estadual ou federal)?

– Não, nenhum incentivo. Ganhamos uma moção de reconhecimento pautada pelo Coletivo Enfrente no ano passado. O poder municipal também buscou uma parceria com a gente. Mas a parceria era basicamente nos dar dinheiro para seguir fazendo voluntariamente o que já estávamos fazendo, acrescido da dor de cabeça de prestar contas de recursos públicos com muito maior rigidez, com notas fiscais que hoje não são a realidade da agricultura familiar. Acho que falta muita compreensão e comprometimento com a agricultura familiar nesse município, seja desta ou de gestões anteriores.  A agricultura familiar está literalmente abandonada, sem nenhum tipo de apoio ou valorização, e também sem auxílio para que os agricultores familiares consigam acessar as poucas políticas públicas existentes. Não dá para esperar que os produtores cheguem até a gestão. Eles estão muito ocupados tentando sobreviver, tentando arduamente.

É muito triste pra gente testemunhar isso, um município localizado numa região com o segundo melhor solo do mundo não ter uma estrutura básica de fomento à agricultura familiar.

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